Em tempos de redes sociais e comunicação instantânea, é comum que disputas pessoais ou comerciais ultrapassem os meios tradicionais e acabem escancaradas na internet.
Mas será que cobrar alguém por uma dívida nas redes sociais é crime? Um caso recente julgado pelo Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJDFT) reacendeu o debate sobre os limites legais das cobranças digitais e expôs os riscos que comerciantes e credores correm ao tentar “resolver” pendências financeiras publicamente.
O caso que chamou a atenção: cobrança virou condenação
Tudo começou quando uma mulher adquiriu um celular no valor de R$ 2.360, pagando uma entrada de R$ 500. Após perder o emprego, ela comunicou ao vendedor que precisaria de mais tempo para quitar o restante do valor. A situação poderia ser resolvida com negociação, como tantas outras. No entanto, o comerciante decidiu seguir por outro caminho — o da exposição pública e vexatória.
Ele criou uma montagem com a foto da cliente, inserindo a palavra “WANTED” (procurada) e a expressão alemã “tot oder lebendig” (viva ou morta), como se ela fosse uma criminosa. A imagem foi compartilhada em redes sociais e enviada para amigos e familiares da mulher, com o objetivo de pressioná-la publicamente a pagar a dívida.
Além da montagem ofensiva, o vendedor ainda fez ameaças nos comentários das redes sociais da cliente, sugerindo que entraria em contato com o novo empregador dela — uma forma clara de intimidação.
O resultado? O comerciante foi condenado a pagar R$ 3 mil por danos morais e a retirar todas as postagens relacionadas ao caso, com multa diária de R$ 500 em caso de descumprimento.
O que diz a Justiça sobre cobranças públicas?
A decisão do TJDFT foi unânime. Os desembargadores afirmaram que, embora a cobrança extrajudicial de dívidas seja legítima, ela precisa respeitar os limites legais e os direitos fundamentais do consumidor.
O Código de Defesa do Consumidor (CDC) é claro em seu artigo 42:
“Na cobrança de débitos, o consumidor inadimplente não será exposto ao ridículo, nem será submetido a qualquer tipo de constrangimento ou ameaça.”
Ou seja, não é crime cobrar alguém, mas o modo como essa cobrança é feita pode gerar consequências civis e até penais.
Expor o devedor publicamente, associar sua imagem a mensagens ofensivas ou fazer ameaças pode configurar dano moral, além de crimes como injúria, difamação ou perseguição (stalking).
O que pode e o que não pode ao cobrar pela internet?
✅ É permitido:
Enviar mensagens privadas para o devedor via e-mail, SMS, WhatsApp ou outro canal direto;
Informar sobre o valor da dívida, possíveis negociações, parcelamentos ou consequências legais;
Manter uma linguagem respeitosa e não intimidadora;
Registrar as tentativas de contato para eventual ação judicial.
❌ Não é permitido:
Expor o nome do devedor em redes sociais ou grupos públicos;
Fazer montagens com fotos, memes ou apelidos ofensivos;
Ameaçar o devedor, especialmente em relação à sua reputação profissional ou pessoal;
Divulgar dados pessoais como CPF, endereço ou local de trabalho;
Fazer ligações repetidas ou em horários inapropriados.
O risco da reputação digital
O caso julgado no DF evidencia um ponto cada vez mais sensível: a reputação digital. Em tempos de redes sociais, onde imagens, comentários e prints circulam com facilidade, a exposição de uma dívida pode causar danos sérios à imagem de uma pessoa.
E isso não se aplica apenas aos consumidores. Para comerciantes, atitudes como essa também podem resultar em prejuízos à reputação do negócio. Afinal, ninguém quer comprar de alguém que resolve conflitos com ameaças públicas.
O que fazer se você for cobrado de forma constrangedora?
Se você for alvo de uma cobrança abusiva, especialmente em ambiente público ou digital, há algumas medidas que podem ser tomadas:
Salve todas as provas: prints, mensagens, links e qualquer conteúdo que comprove o constrangimento.
Busque ajuda jurídica: procure um advogado ou defensor público para avaliar o caso.
Registre um boletim de ocorrência, especialmente se houver ameaças ou exposição indevida.
Entre com ação judicial, caso haja danos morais ou invasão de privacidade.
Notifique a plataforma onde a postagem foi feita, solicitando a remoção do conteúdo ofensivo.
Cobrar sim, constranger não
O caso do vendedor que perdeu na Justiça serve de alerta: cobrar uma dívida é um direito, mas constranger publicamente é uma violação de direitos. O ambiente digital não está à margem da lei. Pelo contrário — tudo o que se publica pode ser usado judicialmente, tanto para defesa quanto para acusação.
Seja comerciante, profissional autônomo ou credor, é fundamental entender que o respeito ao Código de Defesa do Consumidor e aos princípios da boa-fé são indispensáveis em qualquer tipo de cobrança.
A internet pode ser uma aliada na negociação de dívidas, mas, usada de forma imprudente, também pode se transformar em cenário de processos, condenações e prejuízos morais e financeiros.