Trabalhadores brasileiros rejeitam escala 6×1 e priorizam qualidade de vida: comércio enfrenta dificuldade inédita para preencher vagas, lojas ficam fechadas aos domingos e empresários buscam alternativas para atrair candidatos
Nos últimos anos, o mercado de trabalho brasileiro vem passando por uma transformação profunda. Salários mais altos, escalas menos desgastantes e maior equilíbrio entre vida pessoal e carreira têm se tornado prioridade para os trabalhadores, especialmente entre os mais jovens.
Como resultado, a tradicional escala 6×1, que exige que o profissional trabalhe seis dias seguidos e tenha apenas um dia de folga, vem sendo rejeitada de forma crescente. Essa mudança de mentalidade tem gerado desafios inéditos para comerciantes de diversas regiões do país, que relatam dificuldade para preencher vagas de emprego, mesmo em setores que historicamente não sofriam com rotatividade.
O impacto da mudança de comportamento
A transformação no comportamento dos candidatos se intensificou após a pandemia de Covid-19. Com o isolamento social e a valorização de momentos de lazer e saúde mental, muitos trabalhadores passaram a priorizar qualidade de vida, flexibilidade de horários e equilíbrio entre vida pessoal e carreira. Hoje, não basta um salário competitivo para atrair profissionais; fatores como jornada de trabalho e dias de folga influenciam diretamente na decisão de aceitar ou recusar uma oferta de emprego.
No comércio, essa realidade se tornou especialmente evidente. Empresários enfrentam dificuldades para manter equipes completas, principalmente em funções ligadas a atendimento, vendas e caixa. Uma reportagem do G1 destacou o caso de Rachid Sleiman, comerciante com 41 anos de experiência à frente de uma loja de veículos no Centro de Mogi das Cruzes, que enfrenta problemas para preencher vagas há seis meses.
“Em cinco anos, contratei apenas uma pessoa que permaneceu. Os outros saem em 15, 20, no máximo 30 dias, sempre sem um motivo definido”, relatou Sleiman, ressaltando a alta rotatividade enfrentada pelo setor.
Vagas em aberto e impacto nos horários de funcionamento
A dificuldade de contratação não se limita ao varejo de veículos. Em Mogi das Cruzes, uma padaria tradicional do Parque Monte Líbano deixou de abrir aos domingos devido à falta de funcionários dispostos a trabalhar nesse dia, evidenciando como a rejeição à escala 6×1 impacta diretamente na rotina do comércio.
Segundo Valterli Martinez, presidente do Sindicato do Comércio Varejista de Mogi das Cruzes e Região (Sincomércio), há entre 30 e 50 vagas abertas no comércio do Alto Tietê, com expectativa de crescimento entre 1,8 mil e 2,5 mil oportunidades temporárias até o final do ano. Eventos como o Dia das Crianças, a Black Friday e o Natal devem intensificar ainda mais a necessidade de contratação.
“O comércio tem enfrentado dificuldades para preencher vagas, principalmente em funções ligadas ao atendimento, ao caixa e às vendas. Essa realidade se intensificou no pós-pandemia, quando muitos trabalhadores migraram para outros setores ou para atividades autônomas. De lá para cá, o desafio de encontrar e reter profissionais preparados para o varejo tem sido constante“, afirmou Martinez.
Para minimizar os impactos, o Sincomércio desenvolveu um programa que conecta empresários a candidatos em busca de oportunidades, além de oferecer capacitação em parceria com o Sebrae e o Sesc.
Mudança de mentalidade no mercado de trabalho
A transformação não se restringe apenas a cargos de nível superior. Mesmo funções historicamente associadas a jornadas extensas e escalas 6×1 estão sendo rejeitadas, com profissionais buscando condições menos desgastantes e maior tempo de qualidade fora do trabalho.
O avanço da tecnologia e a percepção de que muitas profissões podem desaparecer ou sofrer profundas transformações nos próximos anos têm levado os trabalhadores a repensarem a ideia de uma carreira longa e estável. O foco passou a ser o equilíbrio entre remuneração, jornada de trabalho e qualidade de vida, redefinindo prioridades no mercado.
A realidade da rotatividade
A rotatividade se tornou um fenômeno generalizado, impactando praticamente todos os setores. Trocar de emprego por diferenças pequenas de remuneração é cada vez mais comum, enquanto a busca por estabilidade deixou de ser prioridade para os trabalhadores, tornando-se uma preocupação maior para os empregadores.
Em áreas como a mecatrônica, por exemplo, mesmo vagas em jornada 5×2, sem exigência de experiência prévia, enfrentam rejeição significativa se os salários não atingirem expectativas mínimas. Muitos candidatos exigem remuneração acima de R$ 3 mil para aceitar a oportunidade, mesmo sem experiência prática.
Consequências para o comércio
O impacto da rejeição à escala 6×1 no comércio vai além das vagas em aberto. Lojas que tradicionalmente funcionavam aos domingos e feriados começaram a reduzir horários de operação ou fechar em dias de menor demanda, afetando diretamente a experiência do consumidor.
Além disso, o custo de contratação e treinamento de novos funcionários aumentou, já que o investimento em capacitação muitas vezes não resulta em retenção a longo prazo. Empresários, então, buscam soluções alternativas, como benefícios diferenciados, escalas mais flexíveis e programas de incentivo, para atrair e manter profissionais.
A busca por soluções
Diante desse cenário, sindicatos e associações empresariais têm reforçado a necessidade de políticas que conciliem os interesses do trabalhador e do empregador. Além de programas de capacitação e recrutamento, há esforços para criar planos de carreira atrativos, oferecer folgas estratégicas e adotar jornadas híbridas, que permitam mais flexibilidade e conciliem produtividade e qualidade de vida.
Especialistas em mercado de trabalho destacam que essa tendência não é passageira. A rejeição à escala 6×1 e a valorização do equilíbrio entre vida pessoal e trabalho devem se consolidar nos próximos anos, redefinindo padrões de contratação, remuneração e gestão de equipes em setores como comércio, serviços e indústria.
Reflexão final
O desafio enfrentado pelo comércio brasileiro reflete uma mudança cultural profunda: trabalhadores estão redefinindo prioridades, valorizando tempo livre, saúde e bem-estar acima da simples estabilidade financeira. Para as empresas, compreender essa transformação e adaptar-se a ela é fundamental para manter competitividade, produtividade e qualidade no atendimento ao cliente.
Enquanto algumas lojas enfrentam dificuldade para preencher vagas e manter operação regular, outras buscam inovar em formas de contratação e benefícios, reconhecendo que o equilíbrio entre vida pessoal e carreira não é apenas um desejo, mas uma exigência crescente no mercado de trabalho pós-pandemia.
O Brasil, portanto, encontra-se diante de um cenário de adaptação necessária, em que a escala 6×1 e jornadas desgastantes se tornam cada vez menos compatíveis com as expectativas de trabalhadores modernos, e a inovação em gestão de pessoas passa a ser decisiva para o sucesso empresarial.