Imagine um sistema capaz de identificar cada compra, processar o pagamento e, ao mesmo tempo, recolher todos os impostos devidos ao governo — em tempo real. Parece algo distante, mas está prestes a se tornar realidade no Brasil. Uma revolução silenciosa está sendo construída nos bastidores do Ministério da Fazenda, com a participação de engenheiros, programadores, especialistas tributários e até gigantes da tecnologia.
Trata-se do novo sistema tecnológico que vai operacionalizar os impostos sobre produtos e serviços previstos na reforma tributária. Ele será, segundo a Receita Federal, 150 vezes maior do que o Pix, tanto em capacidade de dados quanto em complexidade operacional.
A base da nova era tributária
O novo modelo faz parte da estrutura da reforma tributária aprovada pelo Congresso Nacional e envolve a criação de dois tributos principais:
IBS (Imposto sobre Bens e Serviços), de responsabilidade de estados e municípios;
CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços), administrada pelo governo federal.
Esses dois impostos substituirão PIS, Cofins, IPI, ICMS e ISS, simplificando o emaranhado de tributos atuais. No entanto, para fazer essa substituição funcionar de forma automática, o governo precisa de uma infraestrutura tecnológica sem precedentes, capaz de cruzar informações em tempo real e distribuir valores instantaneamente entre as esferas da União, estados e municípios.
Novo sistema tributário 150 vezes maior que o Pix, como vai funcionar?
Para se ter uma ideia da dimensão, o Pix, criado pelo Banco Central, movimenta bilhões de reais todos os dias com base em dados simples: quem paga, quem recebe e o valor da transação.
Mas, no caso dos tributos, a complexidade é muito maior. Como explicou o secretário da Receita Federal, Robinson Barreirinhas, a nota fiscal contém múltiplas informações: descrição do produto, origem, destino, créditos tributários e outros detalhes fiscais.
“No Pix, você tem quem manda, quem recebe e o valor. Na nota, há um monte de outras informações sobre o produto, sobre quem emite e sobre o crédito. O número de documentos é o mesmo, mas o volume de dados é cerca de 150 vezes maior”, disse Barreirinhas.
Essa complexidade exige uma estrutura robusta, capaz de processar milhões de notas simultaneamente e ainda fazer a distribuição automática de tributos.
Como funcionará o sistema “split payment”
O coração do novo modelo é o chamado split payment, ou “pagamento dividido”.
A lógica é simples: quando uma empresa realizar uma venda e receber o pagamento, o valor do imposto não passará mais por ela — será automaticamente separado e transferido aos cofres públicos em tempo real.
Essa tecnologia permitirá que o governo, os estados e os municípios recebam sua parte do tributo instantaneamente, sem depender da boa vontade ou da pontualidade das empresas.
Além disso, o sistema também cuidará de outro ponto fundamental da reforma: o ressarcimento dos créditos tributários. Hoje, as empresas esperam meses para recuperar créditos acumulados. Com o novo modelo, o reembolso poderá acontecer em horas, reduzindo custos e ineficiências.
O combate à sonegação fiscal
Com a implantação do split payment, a sonegação fiscal tende a cair drasticamente.
Como o dinheiro dos tributos será recolhido automaticamente no momento da transação, não haverá espaço para fraudes, atrasos ou omissões.
Segundo Barreirinhas, isso deve eliminar práticas como a das chamadas “noteiras” — empresas de fachada criadas apenas para emitir notas falsas ou manipular informações fiscais.
“A evasão tende a diminuir muito porque o dinheiro já cai diretamente na conta dos governos. A não ser que o pagamento seja em dinheiro físico, todos os meios eletrônicos terão separação automática dos tributos”, explicou o secretário.
Com isso, o empresário não poderá mais pagar impostos com atraso em vendas feitas por meios digitais.
Cronograma de implantação até 2032
O projeto já está em fase de testes, em um piloto que reúne cerca de 500 empresas de diferentes setores.
A previsão da Receita Federal é que, em 2026, o sistema entre em funcionamento com uma alíquota simbólica de 1%, apenas para testes e ajustes operacionais.
A partir de 2027, o split payment começará a operar de forma efetiva para a CBS (tributo federal), principalmente nas transações entre empresas (B2B), sem incluir o varejo.
Em 2027, também está prevista a extinção definitiva do PIS e da Cofins.
Já entre 2029 e 2032, ocorrerá a transição gradual do ICMS e do ISS para o novo IBS, com redução das alíquotas antigas e aumento progressivo das novas.
Essa etapa marcará o fim do modelo tributário atual e o início da plena operação do sistema unificado de tributos sobre consumo.
Impacto econômico e arrecadatório
A simplificação tributária e a automação dos pagamentos têm potencial para transformar a economia brasileira.
Estudos apontam que o sistema poderá recuperar até R$ 500 bilhões por ano, valor equivalente à sonegação fiscal atual, segundo estimativas do tributarista Lucas Ribeiro, CEO da empresa de tecnologia ROIT.
Esse incremento virá principalmente da redução de fraudes e da melhor rastreabilidade das transações.
Além disso, o fluxo automatizado permitirá que governos locais recebam recursos mais rapidamente, aumentando a previsibilidade orçamentária e melhorando a gestão pública.
A tecnologia por trás da operação
A construção desse sistema está a cargo do Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro), com apoio de técnicos da Receita Federal e colaboração de empresas privadas do setor financeiro e de tecnologia.
O volume de dados a ser processado exige infraestrutura de nuvem, inteligência artificial e integração com bancos e fintechs.
Segundo fontes ligadas ao projeto, milhares de profissionais trabalham atualmente no desenvolvimento da plataforma, incluindo engenheiros de big techs internacionais.
O objetivo é garantir que as transações ocorram de forma segura, auditável e instantânea — assim como o Pix, mas com uma complexidade infinitamente superior.
Alíquotas e ajustes da reforma
Mesmo com toda essa inovação, o governo afirma que o novo modelo não aumentará a carga tributária total.
As alíquotas serão calibradas para manter o mesmo peso dos impostos sobre o consumo, mas com mais eficiência e menos brechas para evasão.
Por outro lado, especialistas alertam que a alíquota de referência brasileira — que será aplicada à maioria das empresas — pode se tornar uma das mais altas do mundo, dada a amplitude da base de incidência e o custo de transição.
O Brasil à frente da transformação digital fiscal
Com essa iniciativa, o Brasil se prepara para implantar o sistema tributário mais automatizado do planeta.
Ao unir a eficiência tecnológica do Pix com a inteligência de dados das notas fiscais eletrônicas, o país pode se tornar referência mundial em governança fiscal digital.
O desafio, porém, será garantir transparência, estabilidade e adaptação das empresas ao novo modelo — que promete mudar para sempre a forma como os impostos são cobrados e pagos no país.