Durante anos, milhões de aposentados e pensionistas do INSS conviveram com um mistério em seus contracheques: descontos pequenos, mas recorrentes, de entidades que muitos jamais tinham ouvido falar. Somente em 2025, com o avanço das investigações da Controladoria-Geral da União (CGU) e da Polícia Federal (PF), o escândalo veio à tona, revelando um rombo bilionário e a maior fraude já registrada na história recente da Previdência Social.
Agora, após meses de debate e pressão pública, o Congresso Nacional deu um passo decisivo para corrigir o erro. A Comissão Mista de Orçamento (CMO) aprovou, na terça-feira (21), a Medida Provisória 1.306/2025, que autoriza a destinação de R$ 3,31 bilhões para ressarcir os aposentados e pensionistas lesados.
O texto ainda precisa ser analisado pelo plenário da Câmara dos Deputados e, posteriormente, pelo Senado Federal. Mas o gesto sinaliza um reconhecimento claro: milhões de brasileiros foram vítimas de um esquema de proporções alarmantes.
A fraude que nasceu de uma brecha na lei
O escândalo teve origem em 2019, quando uma mudança normativa abriu espaço para que associações e sindicatos realizassem descontos automáticos nos benefícios previdenciários. Em tese, esses descontos só poderiam ocorrer com a autorização por escrito do beneficiário. No entanto, na prática, o sistema de controle se mostrou vulnerável.
Assinaturas falsas, documentos adulterados e até o uso de dados vazados permitiram que milhares de aposentados fossem “associados” a entidades sem sequer saber. O resultado foi um desvio sistemático de recursos, mascarado por cobranças aparentemente legítimas — sempre de valores baixos, entre R$ 30 e R$ 50 por mês.
A Polícia Federal identificou, por exemplo, a criação de entidades de fachada, como a suposta “Amar Brasil”, formadas exclusivamente para desviar recursos de beneficiários. Com o tempo, o número de entidades fraudulentas explodiu, tornando o controle praticamente impossível.
Como o golpe se espalhou pelo país
De acordo com a CGU, o esquema funcionava em várias frentes:
Criação de associações fantasmas: criminosos registravam novas entidades com CNPJs válidos e sedes fictícias.
Uso de documentos falsos: eram inseridos nos sistemas do INSS para autorizar descontos mensais.
Valores baixos e recorrentes: para não levantar suspeitas, os débitos tinham valores modestos, que passavam despercebidos por grande parte das vítimas.
Descrições confusas nos extratos: os contracheques traziam termos genéricos, como “contribuição associação X”, sem explicar a origem.
Resistência na apuração: quando aposentados tentavam reclamar, o INSS, em muitos casos, alegava que o desconto era “regular”, prolongando o sofrimento das vítimas.
Essa combinação de fatores fez com que a fraude se mantivesse por anos, movimentando bilhões de reais até ser desbaratada por uma operação conjunta da Polícia Federal e da CGU.
O impacto sobre os aposentados
O drama atingiu, em especial, idosos de baixa renda, que dependem integralmente da aposentadoria para sobreviver. Muitos relataram ter enfrentado meses de descontos indevidos antes de conseguir cancelar a cobrança.
As entidades envolvidas se apresentavam como “associações de apoio ao idoso” ou “grupos de defesa do aposentado”, usando nomes que passavam confiança. Em outros casos, ligavam diretamente para as vítimas, alegando que o desconto era necessário para manter o “benefício ativo”.
O resultado foi devastador: mais de 3 milhões de beneficiários tiveram valores subtraídos sem autorização. A devolução integral desse montante tornou-se uma das principais demandas sociais de 2025.
A medida provisória que promete corrigir a injustiça
A MP 1.306/2025 autoriza o uso de R$ 3,31 bilhões do orçamento federal para ressarcir os aposentados e pensionistas afetados. A aprovação da medida pela Comissão Mista de Orçamento foi unânime, embora tenha vindo acompanhada de restrições.
O relator, senador Esperidião Amin (PP), ressaltou que a despesa, embora urgente, não pode ser considerada “imprevisível”. Segundo ele, os órgãos de controle já haviam alertado sobre o risco da fraude e estimado perdas superiores a R$ 4,4 bilhões.
“Não se pode argumentar que a fraude não era conhecida, nem mesmo defender que o valor não era estimável”, afirmou o parlamentar durante a sessão.
Amin incluiu no relatório um dispositivo que impede o governo de usar os valores devolvidos pelos fraudadores para melhorar o resultado fiscal. Em vez disso, os recursos recuperados deverão ser reaplicados diretamente no pagamento de benefícios previdenciários.

Comissão Mista de Orçamento do Congresso Nacional
Posicionamento do Supremo Tribunal Federal
A decisão da comissão está alinhada com entendimento anterior do Supremo Tribunal Federal (STF), que determinou que despesas relacionadas ao ressarcimento não podem ser contabilizadas como despesas primárias — ou seja, não entram no cálculo da meta fiscal. Essa decisão evita que o governo use o episódio para mascarar o déficit das contas públicas.
Com isso, a devolução passa a ter caráter reparatório, e não contábil, reforçando o compromisso de que o dinheiro voltará integralmente aos aposentados e pensionistas prejudicados.
Quem tem direito ao ressarcimento e como funciona
O processo de devolução dos valores já está em andamento. Segundo dados oficiais do Ministério da Previdência, até outubro de 2025:
R$ 2,1 bilhões já foram devolvidos;
3,1 milhões de aposentados e pensionistas receberam os valores;
o prazo para adesão ao acordo de ressarcimento segue até novembro de 2025.
A devolução ocorre de forma automática, em parcela única, corrigida pela inflação. Os beneficiários que aderiram ao acordo não precisam apresentar nova solicitação — o valor é creditado diretamente na conta onde o benefício é pago.
Para quem ainda não recebeu, o governo orienta que a consulta seja feita pelo Meu INSS (aplicativo ou site) ou por meio do telefone 135. O sistema identifica automaticamente se há saldo a ser restituído.
O papel da CGU e da Polícia Federal nas investigações
A descoberta da fraude foi resultado de uma operação conjunta da CGU e da Polícia Federal, iniciada em 2023 após denúncias de aposentados e irregularidades detectadas nos sistemas de controle. A investigação revelou que o número de entidades com autorização para realizar descontos cresceu de forma anormal entre 2019 e 2021, saltando de cerca de 400 para mais de 1.600.
O deputado Alencar Santana (PT) destacou durante a sessão que o esquema nasceu durante o governo anterior e só foi desvendado após o trabalho minucioso dos órgãos de controle.
“A fraude teve origem em 2019, e o número de entidades continuou aumentando até que a Polícia Federal, com base nas informações da CGU, desvendou o esquema”, afirmou.
A operação resultou em afastamentos, demissões e processos administrativos contra servidores e gestores envolvidos. Além disso, diversos inquéritos seguem em andamento para punir os responsáveis civis e criminais.
Desdobramentos e próximos passos
A expectativa é que o plenário da Câmara dos Deputados vote a MP nas próximas semanas. Se aprovada, seguirá para o Senado Federal, que deve manter o texto. Caso haja alterações, a proposta retorna à Câmara para votação final.
Enquanto isso, o governo trabalha em novos mecanismos de segurança digital para impedir que casos semelhantes se repitam. Entre as medidas em estudo estão:
criação de um cadastro nacional de associações autorizadas a realizar descontos;
exigência de autorização biométrica para qualquer débito em folha;
auditorias trimestrais obrigatórias no sistema do INSS.
Essas ações visam fortalecer o controle e proteger os beneficiários contra novas fraudes.
O alerta que fica
O episódio serve de alerta sobre a necessidade de atenção redobrada aos extratos e contracheques. O INSS recomenda que aposentados e pensionistas verifiquem mensalmente seus pagamentos e denunciem qualquer desconto não reconhecido.
O governo reforça que nenhum desconto de associação ou sindicato deve ser feito sem autorização expressa e individual. Caso o beneficiário identifique irregularidades, deve procurar imediatamente o INSS ou registrar denúncia na Ouvidoria-Geral da União (OGU).