Poucas decisões mexem tanto com o bolso e o cotidiano dos brasileiros quanto o processo para tirar a Carteira Nacional de Habilitação (CNH). Hoje, para milhões de pessoas, o sonho de dirigir legalmente esbarra em uma barreira financeira quase intransponível. Mas uma nova medida do governo federal promete virar esse jogo — e pode significar o fim da obrigatoriedade das autoescolas no país.
O projeto, em análise pelo Conselho Nacional de Trânsito (Contran), prevê a criação de um modelo alternativo em que candidatos possam se preparar com instrutores autônomos, sem necessidade de matrícula em centros de formação de condutores.
Por trás da proposta está uma promessa ambiciosa: reduzir em até 80% o custo total da CNH. A estimativa é do Ministério dos Transportes, que vê nessa mudança uma oportunidade de legalizar milhões de motoristas informais.
Mas afinal, quanto essa redução realmente representa no bolso do cidadão? E o que muda, na prática, para quem sonha em conquistar a primeira habilitação?
O problema do alto custo da CNH no Brasil
Atualmente, mais de 20 milhões de brasileiros dirigem sem habilitação, segundo dados da Secretaria Nacional de Trânsito (Senatran).
Grande parte dessas pessoas alega o mesmo motivo: os altos preços cobrados pelas autoescolas e taxas obrigatórias cobradas pelos Detrans estaduais.
Em 2025, tirar a CNH custa, em média, entre R$ 1.950 e R$ 5.000, dependendo do estado e da categoria (A, B ou AB).
Esse valor inclui aulas teóricas, práticas, exames médicos e psicotécnicos, taxas administrativas e o pagamento do exame final.
Nos estados mais caros, como Rio Grande do Sul e Santa Catarina, o custo pode ultrapassar R$ 4.900. Já nos mais baratos, como Paraíba e São Paulo, a média fica próxima de R$ 2.000.
Os 5 estados com a CNH mais cara do Brasil:
- Rio Grande do Sul (RS): R$ 4.951,35
- Mato Grosso do Sul (MS): R$ 4.477,95
- Bahia (BA): R$ 4.120,75
- Minas Gerais (MG): R$ 3.968,15
- Santa Catarina (SC): R$ 3.906,90
Para muitas famílias, trata-se de um valor inalcançável. E é justamente esse cenário que o governo pretende transformar com a nova regulamentação.
O que compõe o custo da CNH
De forma geral, o preço para se habilitar é composto pelos seguintes itens:
Taxas do Detran: custos administrativos obrigatórios para registro, emissão de documentos e agendamento de provas.
Exames médicos e psicotécnicos: realizados por clínicas credenciadas, custando entre R$ 250 e R$ 350.
Aulas teóricas e práticas: cada aula prática pode custar de R$ 40 a R$ 70, sendo exigidas pelo menos 20 aulas teóricas e 20 práticas na maioria dos estados.
Provas teórica e prática: taxas de exame variam entre R$ 100 e R$ 200.
No modelo atual, as autoescolas são intermediárias obrigatórias, o que encarece o processo e reduz a concorrência de preços.
Quanto vai custar a CNH sem autoescola
De acordo com o Ministério dos Transportes, a nova lei pode reduzir os gastos em até 80%, dependendo da região.
Isso ocorreria porque o candidato poderia pagar apenas pelas taxas e exames obrigatórios, contratando aulas com instrutores autônomos — ou até mesmo estudando de forma independente para o exame teórico.
Veja quanto deve custar, em média, a CNH sem autoescola em cada estado (categoria AB):
Estado / Custo Atual / Custo com Redução (-80%) / Economia Estimada
- Acre (AC): R$ 3.906,60 → R$ 781,32 → Diferença R$ 3.125,28
- Alagoas (AL): R$ 2.069,14 → R$ 413,83 → Diferença R$ 1.655,31
- Amazonas (AM): R$ 3.418,95 → R$ 683,79 → Diferença R$ 2.735,16
- Amapá (AP): R$ 3.780,47 → R$ 756,09 → Diferença R$ 3.024,38
- Bahia (BA): R$ 4.120,75 → R$ 824,15 → Diferença R$ 3.296,60
- Ceará (CE): R$ 3.020,97 → R$ 604,19 → Diferença R$ 2.416,78
- Distrito Federal (DF): R$ 3.005,67 → R$ 601,13 → Diferença R$ 2.404,54
- Espírito Santo (ES): R$ 2.338,76 → R$ 467,75 → Diferença R$ 1.871,01
- Goiás (GO): R$ 2.600,39 → R$ 520,08 → Diferença R$ 2.080,31
- Maranhão (MA): R$ 2.858,01 → R$ 571,60 → Diferença R$ 2.286,41
- Minas Gerais (MG): R$ 3.968,15 → R$ 793,63 → Diferença R$ 3.174,52
- Mato Grosso do Sul (MS): R$ 4.477,95 → R$ 895,59 → Diferença R$ 3.582,36
- Mato Grosso (MT): R$ 2.964,04 → R$ 592,81 → Diferença R$ 2.371,23
- Pará (PA): R$ 2.802,45 → R$ 560,49 → Diferença R$ 2.241,96
- Paraíba (PB): R$ 1.950,40 → R$ 390,08 → Diferença R$ 1.560,32
- Pernambuco (PE): R$ 3.416,44 → R$ 683,29 → Diferença R$ 2.733,15
- Piauí (PI): R$ 2.401,00 → R$ 480,20 → Diferença R$ 1.920,80
- Paraná (PR): R$ 3.670,83 → R$ 734,17 → Diferença R$ 2.936,66
- Rio de Janeiro (RJ): R$ 2.567,82 → R$ 513,56 → Diferença R$ 2.054,26
- Rio Grande do Norte (RN): R$ 2.806,00 → R$ 561,20 → Diferença R$ 2.244,80
- Rondônia (RO): R$ 2.355,22 → R$ 471,04 → Diferença R$ 1.884,18
- Roraima (RR): R$ 3.828,40 → R$ 765,68 → Diferença R$ 3.062,72
- Rio Grande do Sul (RS): R$ 4.951,35 → R$ 990,27 → Diferença R$ 3.961,08
- Santa Catarina (SC): R$ 3.906,90 → R$ 781,38 → Diferença R$ 3.125,52
- Sergipe (SE): R$ 3.049,97 → R$ 609,99 → Diferença R$ 2.439,98
- São Paulo (SP): R$ 1.983,90 → R$ 396,78 → Diferença R$ 1.587,12
- Tocantins (TO): R$ 2.985,33 → R$ 597,07 → Diferença R$ 2.388,26
Esses números representam estimativas médias baseadas em projeções do Ministério dos Transportes.
A diferença é tão significativa que, na prática, tirar a CNH pode se tornar até quatro vezes mais acessível.
Como vai funcionar o novo modelo
O texto preliminar da proposta prevê que o candidato à habilitação tenha duas opções:
Autoescola tradicional, seguindo o modelo atual, com aulas presenciais obrigatórias;
Formação livre, com instrutores autônomos ou autoaprendizado, desde que cumpra os requisitos técnicos para as provas.
Esses instrutores independentes precisarão ser credenciados pelo Detran, garantindo que o ensino tenha qualidade e segurança.
A ideia é ampliar o acesso à formação sem eliminar completamente o papel das autoescolas — que continuariam como opção para quem preferir um acompanhamento mais completo.
Além disso, o curso teórico poderá ser feito online, em plataformas aprovadas pelo governo, reduzindo ainda mais os custos e a burocracia.
Por que o governo quer mudar a regra
O principal argumento do Ministério dos Transportes é democratizar o acesso à habilitação.
Hoje, o custo médio de R$ 3.000 inviabiliza o processo para milhões de brasileiros de baixa renda, especialmente nas regiões Norte e Nordeste.
Além da questão econômica, há um impacto social relevante: dirigir legalmente permite o acesso a empregos formais, especialmente em áreas rurais ou em cidades com transporte público limitado.
Com a redução dos custos, o governo espera regularizar milhões de condutores que hoje estão à margem da legislação.
Outro ponto citado é o aumento da concorrência: com instrutores autônomos, os preços das aulas podem cair naturalmente, estimulando o mercado e gerando novas oportunidades de trabalho.
As críticas e desafios da proposta
Apesar do entusiasmo, o projeto também enfrenta resistência das autoescolas e de parte dos departamentos estaduais de trânsito.
As entidades argumentam que a redução drástica das aulas práticas obrigatórias pode comprometer a segurança no trânsito.
Segundo a Federação Nacional das Autoescolas, o aprendizado prático é essencial para evitar acidentes, especialmente entre motoristas iniciantes.
Há também preocupações sobre a padronização do ensino, já que cada instrutor autônomo poderá adotar métodos diferentes.
Além disso, existe o risco de que instrutores informais passem a atuar sem credenciamento, o que exigirá fiscalização rigorosa do governo.
O que falta para a medida entrar em vigor
Atualmente, a proposta está em consulta pública, fase em que o governo coleta opiniões de cidadãos, especialistas, entidades e órgãos estaduais.
Depois disso, o texto segue para análise no Conselho Nacional de Trânsito (Contran).
Somente após a aprovação do Contran e a publicação da regulamentação é que os Detrans poderão começar a aplicar o novo modelo.
O cronograma inicial prevê que as primeiras autorizações para instrutores autônomos sejam concedidas ainda em 2026, caso o texto seja aprovado sem grandes alterações.
O impacto esperado para a população
Se aprovada, a medida deve estimular a economia local e ampliar a formalização de instrutores independentes.
Estima-se que mais de 10 milhões de brasileiros possam tirar a CNH nos primeiros dois anos de vigência da nova lei.
Outro ponto positivo é o possível aumento da arrecadação dos Detrans, já que mais pessoas terão condições de pagar pelas taxas e exames, atualmente inacessíveis para muitos.
Além disso, especialistas em mobilidade defendem que o modelo alternativo pode reduzir o número de motoristas irregulares, tornando o trânsito mais seguro e organizado.
O futuro da habilitação no Brasil
A discussão sobre o fim da obrigatoriedade das autoescolas não é nova, mas nunca esteve tão próxima de se tornar realidade.
Entre os defensores da mudança, o argumento central é a liberdade de escolha: o cidadão poderá decidir se quer pagar mais por um curso completo em uma autoescola ou buscar alternativas mais econômicas com instrutores independentes.
A nova política também pode inspirar outros modelos de formação digital, como simuladores online e cursos híbridos, combinando tecnologia e prática supervisionada.
No fim das contas, a grande questão não é apenas quanto custará tirar a CNH — mas quem finalmente poderá ter acesso a ela.