Fim do Imposto de Renda defendido por deputada reacende polêmica: proposta pode causar efeito dominó em repasses do FPE e FPM, secar o caixa de Estados e principalmente dos municípios que dependem das transferências da União
A proposta apresentada pela deputada federal Júlia Zanatta (PL-SC), que prevê a extinção do Imposto de Renda para pessoas físicas (IRPF) e jurídicas (IRPJ), mexeu com um dos pilares mais sensíveis do pacto federativo brasileiro: os Fundos de Participação dos Estados (FPE) e dos Municípios (FPM).
Embora a discussão pública esteja concentrada na ideia de aliviar o bolso do contribuinte e reduzir a carga tributária, especialistas em contas públicas alertam que a medida, se aprovada sem compensações, pode desencadear um efeito dominó imediato no caixa dos governos estaduais e, principalmente, das prefeituras, que têm nesses repasses sua principal fonte de receita.
FPE e FPM: por que dependem do Imposto de Renda
Pela Constituição Federal, parte da arrecadação de Imposto de Renda (IR) e do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) é destinada aos fundos de participação.
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FPE: recebe 21,5% da arrecadação líquida de IR e IPI.
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FPM: conta com 22,5% da base constitucional, além de cotas extras em julho, setembro e dezembro.
Na prática, isso significa que cada real arrecadado com IR e IPI tem uma parcela obrigatória que vai para Estados e municípios, em percentuais fixos definidos no artigo 159 da Constituição. Ou seja, não é um repasse voluntário do governo federal, mas uma transferência obrigatória prevista em lei.
Sem o IR, a base de cálculo encolheria abruptamente, comprometendo os repasses já no ciclo seguinte.
Quanto dinheiro some se o IR deixar de existir
Em abril de 2025, segundo dados do Tesouro Nacional, os repasses de FPE e FPM somaram R$ 25 bilhões. Para muitas prefeituras, especialmente as de cidades pequenas, esse dinheiro representa até 80% da receita corrente.
Se o IR fosse zerado, essa quantia simplesmente desapareceria do fluxo. A Confederação Nacional de Municípios (CNM) alerta que os segundos e terceiros decêndios do FPM, pagos ao longo do mês, já deixam muitas prefeituras no limite do caixa. Sem a arrecadação que dá lastro ao fundo, o risco de atraso em folha, saúde e educação seria imediato.
IR tem peso maior que o IPI na composição
Embora tanto IR quanto IPI sirvam de base para FPE e FPM, os números mostram que o Imposto de Renda é a espinha dorsal dessas transferências.
Nos últimos anos, o IPI passou por sucessivas reduções de alíquotas e medidas de desoneração, diminuindo sua participação relativa. Assim, é o IR que garante estabilidade ao fluxo dos fundos. Extingui-lo significaria, na prática, cortar a principal fonte de sustentação das transferências constitucionais.
Efeito colateral: cotas extras também desaparecem
Além dos percentuais fixos, os municípios contam com reforços em meses específicos:
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Julho: cota extra criada pela Emenda Constitucional 84/2014.
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Setembro: reforço instituído pela EC 112/2021, que chegou a 1% em 2025.
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Dezembro: adicional de fim de ano, criado pela EC 55/2007.
Essas cotas são calculadas sobre a arrecadação de IR e IPI. Com o fim do IR, essas injeções extras também minguariam, reduzindo justamente o fôlego financeiro que muitas prefeituras usam para pagar 13º salário, fornecedores e despesas de fim de exercício.
O que diz a Lei de Responsabilidade Fiscal
Do ponto de vista jurídico, a proposta enfrenta um obstáculo de peso: o artigo 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).
Segundo a regra, qualquer medida que implique renúncia de receita precisa trazer:
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Estimativa de impacto orçamentário-financeiro.
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Medidas compensatórias, seja aumento de outras receitas ou corte de despesas.
Sem um “plano B” que substitua o IR, a extinção do tributo poderia ser considerada inconstitucional e inviável legalmente.
Reforma tributária não substitui automaticamente o IR
Desde a aprovação da Emenda Constitucional 132/2023, o Brasil vive uma fase de transição para um novo sistema tributário, que unificará tributos sobre consumo em dois impostos: a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS).
No entanto, esses tributos não substituem automaticamente o IR e o IPI na composição do FPE e FPM. Isso significa que, mesmo com a reforma em andamento, seria necessário aprovar uma nova emenda constitucional para redefinir as bases de cálculo dos fundos e preservar os repasses.
Risco de colapso local em semanas
O desenho federativo brasileiro faz com que a União concentre boa parte da arrecadação, mas redistribua recursos por meio de transferências obrigatórias.
Se o Imposto de Renda for extinto sem compensações, o impacto seria sentido em questão de semanas:
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Municípios menores, altamente dependentes do FPM, seriam os primeiros a sentir o baque.
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Estados do Norte e Nordeste, que recebem maior fatia do FPE, enfrentariam dificuldades para manter serviços básicos.
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Até mesmo capitais e grandes cidades veriam queda expressiva em receitas usadas para custear saúde, educação e infraestrutura.
Três perguntas que a proposta precisa responder
Especialistas apontam que a proposta de extinguir o IR só se sustentaria com respostas claras para três pontos:
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Qual será a fonte compensatória? — aumento de outros tributos, corte de gastos ou nova forma de arrecadação.
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Como alterar a Constituição? — o artigo 159 precisaria ser redesenhado para preservar os repasses.
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Como cumprir a LRF? — sem estimativa de impacto e compensação, a medida pode ser travada juridicamente.
Sem essas respostas, o risco é de colapso imediato no caixa de Estados e municípios, gerando instabilidade fiscal e social.
Debate político x realidade fiscal
A proposta de Júlia Zanatta surgiu no embalo do debate sobre a ampliação da faixa de isenção do IR, uma bandeira popular que busca aliviar a carga sobre a classe média. Contudo, extinguir completamente o imposto é uma medida que vai além da disputa ideológica: atinge o coração do modelo de financiamento do setor público brasileiro.
Enquanto defensores falam em “liberdade financeira para o cidadão”, críticos lembram que serviços como saúde, educação e segurança pública dependem, em última instância, de arrecadação estável.
Resumo do que você viu até aqui
O fim do Imposto de Renda, como propõe a deputada, pode até soar atraente para quem paga a alíquota mês a mês, mas por trás dessa promessa há um custo oculto bilionário para Estados e municípios.
Sem um plano consistente que responda a questões jurídicas, fiscais e constitucionais, a proposta tem mais chances de gerar colapso no caixa local do que alívio para o contribuinte.
Em resumo: sem IR, não há FPE nem FPM como conhecemos hoje — e isso significa que, do ponto de vista federativo, a medida mexe não apenas com a arrecadação, mas com a própria engrenagem que mantém em funcionamento milhares de prefeituras e governos estaduais em todo o Brasil.