Poucos esperavam que o anúncio viesse tão abrupto. Em plena manhã de julho, funcionários da fábrica da ADM (Archer Daniels Midland) em Três Corações (MG) foram surpreendidos com a notícia: a maior planta de ração para pets da empresa na América Latina será encerrada em até 90 dias. O comunicado direto, feito no dia 15 de julho, deixou a cidade em choque. Cerca de 900 pessoas foram demitidas de uma só vez, com outros 300 empregos indiretos também ameaçados.
A decisão da multinacional americana, que investiu bilhões na estrutura nos últimos anos, faz parte de uma reestruturação global com foco em corte de custos e mudança de prioridades geográficas. Mas o impacto vai muito além da empresa: atinge toda a economia regional e reforça o debate sobre a perda de competitividade da indústria brasileira.
A fábrica bilionária que virou símbolo de incerteza
A unidade de Três Corações foi adquirida pela ADM em 2019, como parte da estratégia de fortalecer sua atuação no mercado de nutrição animal e pet food. Com capacidade para produzir mais de 500 mil toneladas por ano de ração para cães e gatos, a planta se tornou uma referência no setor — tanto pela escala quanto pela modernização tecnológica.
Ao longo dos anos, a unidade empregou cerca de 900 trabalhadores diretos, sendo uma das maiores empregadoras da cidade. Em termos financeiros, estimativas de mercado avaliavam a fábrica em valores entre R$ 1 bilhão e R$ 1,5 bilhão, mas mesmo após mais de um ano de tentativas de venda, nenhum comprador foi encontrado.
Diante do impasse, a ADM optou pelo fechamento definitivo. A estrutura será desativada em 90 dias, com parte da equipe mantida apenas para o escoamento de estoques e desmobilização da linha de produção.
Cidade em choque: impacto social e econômico
Com pouco mais de 80 mil habitantes, Três Corações enfrenta agora um de seus maiores desafios econômicos dos últimos anos. A saída da ADM representa queda de arrecadação, perda de renda e paralisação de cadeias produtivas locais, que iam de fornecedores agrícolas até empresas de transporte e manutenção.
Muitos dos funcionários demitidos tinham anos de experiência na fábrica, e agora se veem diante da dificuldade de recolocação em uma cidade com mercado de trabalho industrial limitado. Sindicatos locais já convocaram assembleias emergenciais para pressionar a ADM a oferecer algum plano de transição ou apoio para reemprego, o que ainda não foi confirmado pela empresa.
Além dos empregos diretos, estima-se que mais de 300 postos indiretos desaparecerão com o fim das operações, agravando o efeito dominó na economia local.
Por que a ADM decidiu encerrar a operação no Brasil?
O fechamento da planta em Três Corações faz parte de uma reestruturação global da ADM, anunciada em 2024. A multinacional pretende economizar entre US$ 500 milhões e US$ 750 milhões com cortes em fábricas, demissões e redirecionamento de investimentos.
Enquanto encerra as atividades no Brasil, a ADM inaugura uma nova unidade no México, na cidade de Yecapixtla, voltada para alimentos úmidos para pets. O movimento revela uma mudança de foco geográfico, priorizando mercados com maior proximidade dos EUA, custos mais previsíveis e incentivos fiscais mais agressivos.
Esse realinhamento reflete uma tendência global de multinacionais que buscam ambientes de negócios mais estáveis e competitivos, deixando o Brasil de lado em algumas áreas produtivas.
Setor de pet food cresce, mas segue concentrado
Apesar do baque causado pelo fechamento da ADM, o setor de pet food no Brasil segue aquecido. Em 2024, o mercado movimentou mais de R$ 42 bilhões, com crescimento puxado pelo aumento do número de pets nos lares brasileiros.
No entanto, o setor também sofre com a alta concentração. As gigantes Nestlé Purina, Mars e PremieRPet dominam boa parte da produção e distribuição, deixando pouco espaço para pequenas e médias empresas.
Com a saída da ADM, esse cenário tende a ficar ainda mais concentrado, o que pode impactar os preços e a variedade dos produtos oferecidos no mercado nacional. A lacuna deixada por uma operação tão grande não será facilmente preenchida, e os reflexos devem ser sentidos ao longo de 2025.
Risco de desindustrialização e perda de competitividade
O caso da ADM reacende o debate sobre a capacidade do Brasil de manter investimentos industriais de grande porte. Apesar de ter um mercado interno robusto, mão de obra qualificada e capacidade técnica, o país enfrenta obstáculos estruturais que afastam investidores: alta carga tributária, insegurança jurídica, burocracia e falta de incentivos fiscais regionais.
A saída da ADM pode ser interpretada como um sinal de alerta para outras multinacionais com presença no Brasil. Se não houver uma mudança nas condições para quem produz aqui, casos como o de Três Corações podem se tornar cada vez mais comuns.
O que será da estrutura deixada pela fábrica?
A grande incógnita agora é o futuro da planta industrial. Com área e estrutura altamente especializadas, a instalação não pode ser facilmente adaptada para outras finalidades — o que aumenta o risco de se tornar mais uma “fábrica fantasma”no interior do Brasil.
Autoridades locais e estaduais buscam alternativas para atrair novos investidores ou ao menos negociar a reocupação do espaço com alguma indústria de perfil semelhante. Mas o desafio é imenso, especialmente em um momento de desaceleração econômica e alta seletividade por parte dos grupos empresariais globais.
Considerações finais: um retrato do que preocupa a indústria nacional
O fechamento da fábrica da ADM em Três Corações é mais do que uma decisão empresarial — é um retrato de um modelo de desenvolvimento industrial que precisa ser revisto. A cidade perde empregos, a cadeia produtiva se enfraquece, e o Brasil dá mais um passo rumo à desindustrialização silenciosa que há anos ameaça a economia.
Enquanto isso, o setor de nutrição animal segue crescendo, mas sob a sombra da concentração de mercado e da dependência de multinacionais que, a qualquer momento, podem virar as costas para o país.
O episódio expõe uma ferida aberta: até quando o Brasil conseguirá manter suas fábricas de pé?
E mais importante: o que precisa ser feito para que histórias como a de Três Corações não se repitam?
